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SUBJETIVIDADE NARCISISTA E SAÚDE MENTAL NAS RELAÇÕES DE TRABALHO: ENTRE A CULTURA DA PERFORMANCE E A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA

Por David Camargo, Advogado especialista em Direito do Trabalho


As relações de trabalho no Brasil e no mundo vêm sofrendo transformações profundas que extrapolam as mudanças tecnológicas ou legislativas. Por trás da revolução digital e da flexibilização contratual, esconde-se uma transformação ainda mais sutil e perigosa: a forma como o trabalhador moderno constrói sua própria subjetividade, seu sentido de valor pessoal e sua relação com o reconhecimento.


Este artigo analisa como a chamada subjetividade narcisista, fenômeno estudado por Langaro e Benetti¹, impacta diretamente a saúde mental do trabalhador contemporâneo e reforça práticas laborais adoecedoras. Com base nesse estudo e nas reflexões críticas de Marilena Chaui² e de coletâneas sobre precarização do trabalho e saúde mental³, investigamos como esse fenômeno afeta o mundo do trabalho, com destaque no setor bancário.


Subjetividade narcisista: a busca insaciável por validação externa

Langaro e Benetti demonstram que a subjetividade contemporânea é marcada por uma espécie de dependência estrutural da aprovação externa. O trabalhador não busca apenas sua sobrevivência material ou a estabilidade profissional, mas um reconhecimento que valida sua própria existência e define seu valor pessoal.


Esse narcisismo estrutural pode ser, em baixa intensidade, um motor de ambição saudável. Entretanto, em níveis elevados, torna-se fonte de sofrimento psíquico, especialmente quando o reconhecimento não vem ou é obtido a um custo altíssimo — como a saúde mental. No ambiente corporativo, essa dinâmica se encaixa perfeitamente nas culturas empresariais de alta performance, em que a imagem e o resultado se tornam sinônimos da dignidade profissional.


Servidão voluntária e autoexploração: quando o trabalhador se transforma em seu próprio algoz

Marilena Chaui, ao abordar a sociedade da exposição e a cultura do espetáculo, explica como o desejo por reconhecimento externo gera um fenômeno paradoxal: a servidão voluntária. Baseada em La Boétie, Chaui demonstra que, seduzido pela promessa de ascensão e aprovação, o trabalhador se submete de forma ativa à exploração. A obediência, antes garantida pela coerção direta, passa a ser garantida por uma lógica interna: "aceito sofrer porque desejo ser visto como vencedor".


Esse ciclo perverso transforma o trabalhador em seu próprio vigilante. Ele não precisa mais de controle externo: autoexplora-se por conta própria. Não apenas aceita a sobrecarga, como frequentemente se orgulha dela — reforçando a cultura da produtividade tóxica.


Precarização e saúde mental: reflexos da reforma trabalhista de 2017

O livro “Precarização do Trabalho e Saúde Mental no Brasil”³, resultado de ensaios apresentados no XI Seminário do Trabalho, revela como a reforma trabalhista de 2017 aprofundou a precarização da saúde mental da classe trabalhadora. A flexibilidade contratual ampliou a insegurança emocional e a intensificação do trabalho sob novas formas de monitoramento e controle.


O sujeito precarizado hoje não é apenas aquele que perde salário ou benefícios, mas aquele cuja subjetividade é moldada pela instabilidade, pela culpa constante por não produzir o suficiente e pela sensação permanente de substituibilidade. A subjetividade narcisista fragilizada, já instável, encontra nesse ambiente a tempestade perfeita para o adoecimento.


Bancários: campeões da servidão voluntária

Entre todas as categorias profissionais, os bancários figuram entre os mais expostos à cultura da performance, das metas inalcançáveis e da competição interna. Nessa realidade, o bancário não é apenas medido pelos resultados numéricos, mas também por sua postura pública, sua adesão às campanhas motivacionais e sua capacidade de se apresentar como um profissional de sucesso.


O bancário é instigado a participar de rankings de produtividade, exposto em murais internos, comparado com colegas, e convocado a "vender a alma" em campanhas de metas que, muitas vezes, são irreais. Ele posta suas conquistas nas redes sociais da empresa, grava vídeos comemorando vendas e participa de treinamentos motivacionais onde o mantra é "se você não bateu a meta, é porque não quis". Tudo isso reforça uma cultura de performance narcisista, onde o valor pessoal é confundido com o resultado imediato.


Esse trabalhador, muitas vezes, já inicia sua carreira com uma subjetividade fragilizada pela cultura digital e pelo culto à performance que o acompanha desde a juventude. No ambiente bancário, essa fragilidade é explorada como método de gestão: a culpa pelo fracasso é sempre individual, ignorando-se fatores estruturais como metas abusivas, falta de treinamento ou sobrecarga de demandas.


A consequência é um ciclo de autoexploração consentida: o bancário trabalha cada vez mais, aceita prolongar sua jornada, leva demandas para casa e normaliza quadros de ansiedade, insônia e crises de pânico. Afinal, tudo isso é visto como "prova de comprometimento". Nas rodas de conversa entre colegas, é comum ouvir frases como "aqui ninguém dorme tranquilo no fim do mês" ou "se você não aguenta a pressão, está no lugar errado".


Quando o corpo e a mente entram em colapso, o bancário se vê diante da maior contradição: mesmo esgotado, sente-se culpado por não aguentar, como se o adoecimento fosse prova de sua incapacidade pessoal — e não da toxicidade do ambiente. Essa lógica é a tradução perfeita da servidão voluntária de que fala Chaui².


O bancário fragilizado, ansioso ou deprimido, frequentemente silencia sua dor, por medo de parecer fraco diante dos colegas ou da gestão. Esse silêncio, no entanto, é parte do próprio mecanismo de perpetuação da cultura doente. Como dizem muitos trabalhadores do setor: "no banco, fraqueza não tem vez".


É preciso romper com essa narrativa e lembrar que a responsabilidade pela saúde mental é também da empresa. O direito à saúde no trabalho é um direito fundamental, protegido pela Constituição Federal e pela CLT, e não pode ser relativizado por discursos motivacionais que culpabilizam o próprio trabalhador pelo adoecimento.


Assédio moral institucional e responsabilidade do empregador

Essa estrutura narcisista-organizacional cria o ambiente perfeito para o assédio moral institucional, modalidade em que o assédio não é uma prática isolada de um gestor abusivo, mas uma lógica de gestão que transforma a exposição, o ranking e o medo em ferramentas de controle.


O art. 7º, XXII da Constituição Federal e o art. 157 da CLT estabelecem o dever de proteção do empregador, que deve zelar por condições de trabalho saudáveis — física e mentalmente. Empresas que fomentam culturas de hiperexposição e performance tóxica (como as famosas dancinhas para o TikTok na divulgação de metas) podem ser responsabilizadas civilmente por danos morais e materiais decorrentes do adoecimento de seus empregados, como temos visto ocorrer com frequência.


Conclusão

A subjetividade narcisista contemporânea não é apenas um fenômeno psicológico individual — é um projeto cultural e econômico que molda o próprio sentido do que significa trabalhar. O trabalhador moderno, especialmente em setores competitivos como o bancário, é simultaneamente vítima e agente dessa lógica. Busca reconhecimento e, para obtê-lo, aceita e reproduz sua própria exploração.


Para o Direito do Trabalho, esse cenário impõe novos desafios. Compreender as doenças psíquicas e sua ligação com a cultura da performance é indispensável para atualizar os conceitos de acidente de trabalho, assédio moral e responsabilidade civil do empregador.


Como bem disse Marilena Chaui, "a maior prisão é aquela que nem parece prisão". O verdadeiro desafio do século XXI é revelar essas prisões invisíveis e reconstruir uma ética do trabalho que reconheça a dignidade humana como valor absoluto — superior a qualquer meta ou ranking.



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David Camargo é especialista em direito do trabalho e advogado do escritório DAVID CAMARGO & ADVOGADOS ASSOCIADOS.



Notas:

1 -LANGARO, Flávia Nedeff; BENETTI, Silvia Pereira da Cruz. Narcisismo e estados afetivos em um grupo de adultos jovens. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 34, n. 2, p. 464-477, 2014. Disponível em: https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0103-56652014000200012&script=sci_arttext. Acesso em: 04 mar. 2025.

2 - CHAUÍ, Marilena. Contra a Servidão Voluntária. Coleção Escritos, Autêntica, 2013.

3 - Precarização do Trabalho e Saúde Mental no Brasil: XI Seminário do Trabalho, 2018.

4 - CHAUÍ, Marilena. Marilena Chaui discute democracia e mundo digital no DR com Demori. Agência Brasil, nov. 2024.


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